Correndo como Lobas

[00:01, um fim de semana qualquer da década de 90]

Ligou o computador, dois cliques, abriu o discador do provedor da Internet, digitou a senha, um clique. O barulho que os modens faziam eram o que os ouvidos humanos entendiam da conversa entre os espíritos das máquinas: do computador do servidor reconhecendo o computador dele como alguém autorizado a estar ali — isso é, segundo os Theurges dos Andarilhos. Já para ela era o último anúncio de pare, volte pra sua vida de mulher, não te querem nas mesas, vão tirar sarro de você. Talvez pior.

Mas aquela noite usaria o seu outro nome, um nome masculino.
Em latim significava “escudo”, pois era exatamente o que aquele nick era, contra a ignorância dos jogadores daquele RPG. Respirou fundo, um clique, digitou o endereço, procurou o link, outro clique, filtrou o assunto e a idade, mais um clique e estava na sala de bate papo.

A Ragabash estalou os dedos, digitou o texto e pressionou o enter:
[00:10:23] Scutum: E ae? Kd esses Banes p gnt chutar a bunda??

— Vivi Silva

É fácil encontrar pessoas que tiveram experiências ruins com o RPG, principalmente tratando-se de jogadores iniciantes. Tão fácil que a comunidade de RPG como um todo deveria parar de tratar essas vivências como questões isoladas e admitir de forma madura que esses problemas existem. Quando começamos a jogar, é muito comum esbarrar com pessoas que não tem paciência pra explicar regras, material pouco acessível (seja por questão de custo ou idioma) e aquela cultura tóxica e competitiva gid gud — que não poderia fazer menos sentido dentro de jogos colaborativos e interpretativos.

E quando se é mulher numa mesa de RPG, a lista de problemas que podemos — e vamos enfrentar — só aumenta.  Temos nosso conhecimento de regras e cenário calado e posto em dúvida a todo momento, nossas personagens são tratadas de forma bidimensional e estereotipada sem nenhuma agência real sobre o que acontece a elas no jogo, nossas ideias valem menos e sempre temos que fazer o dobro do esforço de um jogador para sermos ouvidas. Com tanta dificuldade envolvendo algo que deveria ser simples e um local de lazer, não é de se estranhar que tantas meninas simplesmente desistam do hobbie e acabem se afastando totalmente da comunidade RPGista.

*crack*
A quinta MontBlanc quebrava em sua mão em menos de 24 horas naquele lugar.
O Adren a olhava com ar de paternalista e quase debochado:

— Acho melhor você nem começar. É difícil e são coisas novas, você terá que estudar muito e compreender.

Tentou responder, e foi novamente interrompida..

— Envolve violência. Com certeza, nada bonito pra uma moça ver…

Conseguiu falar rapidamente enquanto ele respirava:

— O senhor leu meu currículo e viu que tenho anos de experiência na área, inclusive na crimina…

Ela a interrompeu novamente:
— Ahhh, li, mas é realm difici…

A voz dele foi saindo do foco de atenção dela, enquanto seu cérebro e fera tentavam entrar em num acordo de quantas canetas ela deveria comprar.

— Sarghetta, personagem da Fernanda Godoy

Em nossa matilha, reunimos cinco jogadoras e mestras que já tem muitos anos dentro da comunidade RPGista como um todo. Algumas tem mais de uma década de experiência com World of Darkness — principalmente como jogadoras de Lobisomem e Vampiro — e é bem triste perceber que em tantos anos de existência, o meio continua sendo tóxico, preconceituoso e pouco inclusivo.


 

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Menina de 13 anos prepara sua primeira mesa de RPG


Contrato social

RPG é um contrato social.

Quando uma mesa se reúne pra jogar ela automaticamente concorda com um set pré-determinado de regras cujo objetivo final é sempre um só: divertir-se contando uma história. Pouco importa os pormenores desse contrato, desde que todos estejam de acordo e que ele seja seguido. Curiosamente, essa questão normalmente passa despercebida pela comunidade de RPG; a maior parte das discussões sobre RPG e contrato social são muito recentes e existe muita gente que não acha esse tipo de acordo necessário, partindo do princípio que tudo que você precisa é não ser um babaca com a sua mesa.

Só que não ser um babaca requer mais atitudes do que as pessoas podem imaginar.

Alguns jogadores acham normal questionar o posicionamento moral de outro personagem durante momentos decisivos, ou mesmo interromper a fala de outro jogador sem a menor consideração pela ação do outro. Acham que devem vencer o RPG a qualquer preço ignorando totalmente o fato de que o RPG é, primariamente, um jogo colaborativo. E em Lobisomem – O Apocalipse — onde a Nação Garou deve manter-se firme na luta contra a Wyrm pelo bem de Gaia — esses comportamentos tornam-se particularmente incompatíveis com o cenário canônico criado pela White Wolf.

Pra uma mulher, enfrentar de frente esses comportamentos é ainda mais difícil porque existe todo um problema estrutural que dá força para a naturalização dessas narrativas de silenciamento, omexplicação e ominterrupção. Assim, o que pode ser muitas vezes percebido como um “obstáculo natural a ser vencido” ou “respeito a ser conquistado” dentro do meio na verdade acaba funcionando como uma muralha que as separa da comunidade.


 

011


Preconceito presumido


Uma coisa que sempre surpreende em universos ficcionais é como diversos preconceitos simplesmente se proliferam sem nenhuma reflexão crítica, supostamente em nome de uma fidedignidade que não contempla toda a diversidade do mundo. E da mesma forma que esses comportamentos são reproduzidos sem reflexão, a argumentação que surge em sua defesa também é bem acrítica e carente de embasamento.

E em Lobisomem – o Apocalipse, com a existência de conceitos hierárquicos como Alfa, Beta e Ômega — vindos de uma pesquisa sobre comportamento lupino que hoje foi desacreditada por seu próprio autor — a presunção de que a Nação Garou é machista é imediata e talvez uma das coisas que mais favoreça o afastamento de meninas do material — além, claro, das experiências negativas com mesas/jogadores/mestres tóxicos.

Em camera lenta ela revia a cena ocorrida há minutos:

Ela caminhava, segurando o rosnado, até a frente da seita inteira reunida para as festividade. A frase de seu companheiro de matilha ecoavam em sua mente com o mesmo tom de deboche e desprezo:

— Hahahahhahaha, se você merecesse tanto assim ser alfa, Gaia teria te feito macho!
— Tá achando que aqui é o bando das Furiosas é?? O Alex é quem vai ficar com as honras da missão! — um outro completou.

Eles eram amigos, a nova família, como poderiam pensar assim?

Aquele era o momento onde tudo tinha mudado. Desafiou o outro ahroun com um uivo de ódio e cheio do pedido por justiça.

Os uivos dos outros a trouxeram de volta para o presente. Limpou com a pata o sangue dos olhos. Alex tinha se rendido. Ela pisava em seu peito e mostrava mais uma vez, que Gaia a fizera alfa, mulher e guerreira dos Presas.

— Leila, personagem da Sarah Helena

Para um homem, usar o filtro da fantasia para narrar uma cena de estupro dentro de uma história pode ser apenas isso: a narração de uma história. Mas para uma mulher que esteja jogando nesse grupo — cuja realidade de vida está intrinsecamente muito mais próxima da possibilidade de um estupro — esse momento pode ser extremamente desconfortável. Não importa que a mesa seja um ambiente seguro e nenhum dos jogadores seja capaz de estuprar alguém, ou que essa mulher em questão nunca tenha sofrido esse tipo de violência: esse assunto pode ser um gatilho. Da mesma forma, reproduzir preconceitos raciais durante a narração de uma mesa que tenha jogadores não brancos é muito pouco empático. É muito surreal que sejamos capazes de imaginar toda uma história complexa envolvendo as forças primordiais que constroem a realidade como conhecemos mas não sejamos capazes de suspender a nossa descrença só um pouco pra evitar preconceitos que não agregam nenhum valor ao enredo ou que simplesmente não levam à nenhuma reflexão.

Sem entrar no mérito particular de cada tribo, a Nação Garou é essencialmente pautada por merecimento e força e qualquer lobo que se mostre capaz tem uma chance real de subir na cadeia de comando. Preconceitos comuns da sociedade humana são comuns da sociedade humana. Por isso, a transposição direta de preconceitos da realidade para o jogo fica incoerente, e alimenta um ambiente hostil para quem quer ter a experiência de fantasia de ser um guerreiro garou. Antes de qualquer coisa, é preciso pensar que as pessoas jogam RPG — não importa qual sistema ou cenário — pra se divertir e esquecer um pouco dos problemas reais. E quando o jogo vai diretamente contra isso ele se torna uma atividade tóxica e que precisa ser repensada.

Acho que a maioria não percebe como é desgastante ser uma mulher em qualquer projeto. Eu estou super acostumada a ser interrompida no meio das minhas frases e meu argumento ser totalmente ignorado. Isso cansa bastante. Quando vou para jogar RPG, quero ter uma experiência legal com boa comunicação — ou seja, já parto do princípio que não quero jogar com o grupo que mais me cria problemas: homens mais velhos que acham que sabem mais do que eu. Infelizmente, isso é a grande maioria dos jogadores de Mundo das Trevas. Não tenho confiança nenhuma de mestrar para jogadores veteranos num cenário que exige tante leitura do Mestre.

— Cecília Reis Braga

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5 thoughts on “Correndo como Lobas”

  1. Achei bem relevante a abordagem, e totalmente verídica. Jogo há mais de duas décadas, e os obstáculos continuam os mesmos; infelizmente desvencilhar o pensamento do jogador ao de personagem é algo quase impossível, tanto quanto seu ego e vivências. Quando usa a expressão “tóxico” no texto, creio que cabe como luva, pois realmente a função primordial de jogar RPG, é sim a diversão e entretenimento de forma criativa, com liberdade de interação. Cansei de ver projetos acabarem por preceitos pessoais de narradores e jogadores, que não se importam com inclusão e ignoram a terapêutica que poderia ser… Cada um sabe seu limite, mas não quer dizer que precise ser testado a cada sessão, em cada grupo. A preocupação em “ganhar” a todo custo, torna desgastante e acaba por causar o desinteresse de quem deseja viver uma história impossível ao humano real, mas que a proposta abarca. Como mulher já sofri preconceitos, rótulos, assédio, mas também encontrei verdadeiros companheiros, cuja magia de compartilhar histórias dura até hoje…no fim, é algo que depende de maturidade, sabedoria, paciência e entrega. E , para as meninas e mulheres: não desistam!!!! Esse mundo também é nosso, muito mais do que imaginam…

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  2. É estranho ver comportamentos assim quando o próprio sistema tem figuras como Gaia, Luna, Dana (e outras Incarnas), Fúrias Negras (que relembram constantemente da desigualdade entre gêneros, mas que também lembram que nasceram com as mesmas garras e Fúria) e tantas heroínas entre as demais tribos (pelo menos uma em cada Tribebook), isso só em Lobisomem; Tiamat (D&D), Matsu (Lenda dos 5 Anéis, uma família com as mulheres mais mortais do Império), Andraste (Dragon Age, quase uma Jesus), Chandra e Liliana (Magic The Gathering), Sylvanas, Alleria e Vereesa Windrunner (WoW), e tantas outras sem contar em filmes e séries (Drakaris virou meme)… cada ambientação
    com suas figuras poderosas que lembram que feitos incríveis independem de gênero, e mesmo assim, alguns personagens (pior quando jogadores) gostam de subestimá-las.
    Uma pena, é o oposto do que o RPG representa.

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    1. Exatamente!
      Eu tenho muita impressão que as pessoas jogam essas coisas e consomem essas histórias sem o menor olhar crítico, sem pensar que a vida real tem centenas de mulheres fantásticas que foram apagadas pela história.

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